Conferência-Debate realizada
em Nanterre – França em homenagem
a Salvador Allende que reuniu historiadores, analistas políticos, jornalistas
do Cône Sul.
23 de novembro de 2013
Ditadura nunca mais!
Marilza
de Melo Foucher
A ditadura no Brasil: Como
ela se impôs?
Em primeiro lugar, do meu ponto de vista, o
golpe de estado no Brasil não foi somente militar, mas também civil. Na época,
a sociedade brasileira tornou-se profundamente polarizada, em razão da crença
de que o Brasil, sob a presidência de João Goulart, iria se juntar a Cuba no
bloco comunista na América Latina. Influentes homens políticos, os magnatas das
grandes mídias, a igreja católica, os grandes proprietários de terras, os
homens de negócios exigiram uma “contrarrevolução” por parte das forças armadas
para reverter o governo. A sociedade estava polarizada entre dois modelos de
desenvolvimento: um baseado na criação de uma indústria nacional, pregando uma
maior independência do capital internacional. Esse modelo visava também um
planejamento regional e impulsionar reformas estruturais, reforma agrária,
reforma do sistema de educação, entre outros. O outro modelo defendido pelos
setores conservadores da sociedade pregava um desenvolvimento econômico ligado
às empresas nacional e multinacional, uma agricultura intensiva, voltada à exportação.
Esse modelo preconizava uma maior ligação com os capitais estrangeiros e os
grandes proprietários de terra. O confronto entre essas duas visões aconteceu
no contexto geopolítico global dominado pela Guerra Fria. Com o apoio dos
Estados Unidos, as forças conservadores organizaram grandes manifestações
populares que pediram abertamente uma intervenção militar. A doutrina da
segurança nacional era então o pilar para combater a ameaça comunista.
Os militares brasileiros não gostavam do uso do termo ditadura e foi através de
uma imensa propaganda de todos os meios de comunicação, principalmente com o
apoio da rede de televisão Globo, que eles conseguiram forjar uma imagem
positiva do golpe de estado junto à opinião pública brasileira. O proprietário
da rede, Roberto Marinho, declarava:
“Nós participamos da Revolução de 1964, nós nos identificamos com as aspirações
nacionais de preservação das instituições democráticas ameaçadas pela
radicalização ideológica, as greves, os problemas sociais e a corrupção generalizada.
Quando nossa redação foi invadida pelas forças antirrevolucionárias, ficamos
firmes em nossa posição. Continuamos a apoiar o movimento vitorioso desde os
primeiros instantes da tomada de poder até o processo de abertura em curso, que
deveria se consolidar com nomeação do novo presidente.” (1)
Será deste modo, que a ditadura entrou no imaginário do povo
brasileiro como um tipo de pseudodemocracia salvadora da pátria! Até hoje, uma
boa parte das forças armadas fazem um escândalo quando se fala da ditadura. Os
militares sempre contaram com o apoio de setores conservadores, de segmentos da
direita e da grande imprensa que festejam o 31 de março como a data da
“gloriosa revolução”. Fazem de tudo para tentar apagar esse passado e esquecer
esse período sombrio da história política brasileira em nome, segundo eles
próprios, da harmonia nacional
Quais formas de resistência
tiveram lugar na época e como marcaram a sociedade brasileira?
A ausência de democracia não impediu a organização da
resistência. O sentido da resistência no Brasil é muito amplo e as estratégias
são muito diferentes. Ela vai de pequenos grupos armados próximos da revolução
cubana e de outras que questionavam as orientações dos partidos comunistas
aliados à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Houve também
organizações de direitos humanos, grupos organizados no seio da igreja
católica, ligados ao que se chama Teologia da Libertação, pastorais,
organizações comunitárias, grupos de defesa da cidadania, grupos de mulheres,
grupos de defesa cultural e ambiental, organizações de educação popular. Sem
contar a participação ativa de muitos artistas, cineastas, jornalistas,
intelectuais, cantores. Todo esse terrorismo cultural dos ditadores não impediu
a resistência artística de confrontar a censura utilizando metáforas e
mensagens disfarçadas. A música e o teatro tiveram uma produção incrível nos
anos de chumbo. Os artistas conseguiram contornar a censura mas não puderam
permanecer no país, a ditadura expulsou e forçou vários artistas e se exilar.
Ao fim dos anos 70, houve um imenso empobrecimento cultural no Brasil. Quanto
aos jornalistas que desafiaram a ditadura, eles deixaram uma lição à nova
geração: vale a pena lutar pela liberdade de expressão! Que o jornalismo de
qualidade pressupõe a liberdade de expressão e diversidade de fontes, temas e
conteúdos, para que a sociedade possa ser informada da maneira mais ampla
possível e poder participar da vida do país.
Todos esses grupos, que foram muito
importantes nessa época, desenvolveram ações contra a ditadura. A resistência
se organizou em toda parte, de norte a sul do país. Contudo, o processo de
democratização do país
Vai se dar de forma muito lento.
Como os cidadãos, os democratas, os movimentos sociais, ligados aos
movimentos de solidariedade internacional, puderam superar a ditadura e
participar da emergência de uma nova democracia?
Temos que fazer jus e homenagear os
movimentos sociais, as organizações populares que muito contribuíram ao
processo de democratização no Brasil. Sob a proteção dos setores mais
progressistas das igrejas (católica e protestante), e, com o apoio da
solidariedade internacional, essas organizações sociais continuam realizando seu
trabalho de educação e cultura. Esses movimentos rejeitaram a versão oficial da
pseudodemocracia. Através da educação popular, os adeptos de Paulo Freire
desenvolveram uma metodologia da resistência nos lugares mais perdidos deste
imenso território. Apesar da repressão,
que segue durante todo o período da ditadura, “a pedagogia do oprimido” (Paulo
Freire) vai continuar sua obra na clandestinidade, nas favelas, nos bairros
populares, com o objetivo de se deixar educar uns aos outros para socializar o
conhecimento de cada um em benefício de um projeto coletivo de transformação.
Nos anos 80, apareceram novos movimentos (o Movimento dos Sem Terra), seguidos
de outros movimentos urbanos, as ONGs de desenvolvimento se reestruturaram. Num
primeiro momento um pouco disperso e frequentemente frágil, todavia, vão
desenvolver o combate para acelerar o processo de democratização do Brasil e
contribuir na formação da cidadania.
É necessário frisar que um dos combates mais significativos desse período de
transição democrática no país foi a proposta de uma nova Constituição no
Brasil, que completou 25 anos este ano. Todas essas organizações tiveram um
papel muito importante porque conseguiram realizar uma grande mobilização
nacional e apresentaram mais de 3000 propostas da nova sociedade civil que
estava emergindo no Brasil.
A promulgação da Constituição de 1988 foi sem qualquer dúvida uma etapa
histórica para a democratização do país, ela ampliou os direitos individuais e
reforçou a democracia no Brasil. Em 1989, foram as primeiras eleições diretas
para presidente desde 1960, e, pela primeira vez essa geração vai exercer sua
cidadania.
Contudo, na jovem democracia brasileira, é
necessário continuar a lutar para imprimir uma nova cultura democrática fundada
sobre a cidadania ativa, pois se a democracia é tributária do cidadão, então a
participação coletiva e o diálogo são indispensáveis.
Qual trabalho de memória e qual transmissão frente às gerações atuais?
Torna-se difícil de imaginar que houve uma demora de
quase 28 anos (depois da “transição democrática”) para que a Comissão Nacional
da Verdade (CNV), encarregada de fazer luz sobre os abusos cometidos durante os
anos de chumbo, tenha podido ver a luz do dia! Até recentemente, não se podia
evocar esse período aos jovens, como se o medo tivesse atravessado as gerações.
Infelizmente, essa parte de nossa história política ainda é tabu. Tem-se uma
história mal contada nos manuais escolares. A jovem geração que viveu sob a
ditadura e os que nasceram a partir de 1964 vão aprender que os princípios de
base do ensino de educação moral e cívica são: ordem, segurança, integração
nacional, culto à pátria. O slogan Brasil era: ame ou deixe.
Esses símbolos punham em valor um patriotismo exagerado, estavam destinados a
permitir uma fusão do pensamento reacionário, conservador e católico.
Por esta razão, o estabelecimento da Comissão da Verdade vai permitir reunir
vários pedaços da história vencida pelas mulheres e homens que lutaram pela
democratização do Brasil e, assim, contar a história de um período que
prejudicou toda forma de expressão cultural e de liberdade de expressão.
A Comissão da Verdade é uma etapa importante, mas é preciso manter a pressão
para modificar a lei de anistia e determinar quem é responsável. A comissão,
por exemplo, pode interrogar, é claro, antigos torturadores, mas não conseguirá
nada enquanto o exército se recusar a abrir seus arquivos.
Por isso, a luta pela democratização no Brasil não acabou e exige sempre a
vigilância, pois infelizmente ainda existe no Brasil numerosos nostálgicos
desse período.
A anistia concedida pelos militares foi um
acordo negociado, um acordo muito ambíguo, pois pressupunha um sentimento de
anistia recíproca. Sob o termo “anistia” foram reunidos em pé de igualdade
vítimas e executores. Isso traduzia o peso dos diferentes setores e das classes
sociais dominantes na época onde o estado correlação de forças estava antes
favorável aos defensores da ditadura. De tal sorte que todo esse período
obscuro, trágico de nossa história política, permaneceu um tabu. Chegou a hora
de se construir uma memória que se oponha à memória oficial e de defender os
verdadeiros valores democráticos.
Toda essa história da resistência à
ditadura militar no Brasil ficou relegada ao subsolo da história. Uma só
verdade foi imposta à juventude brasileira.
O pior foi o silêncio das instituições
brasileiras, e também da sociedade, na pós-ditadura. O comportamento dos
democratas em não confrontar os crimes do passado é chocante, escreveu Edson
Teles Políticas do silêncio -
A memória do Brasil pós-ditadura.
Apagar da memória os crimes cometidos pela
ditadura é apagar da memória as lutas levadas contra ela. Por isso, os documentários
hoje têm um papel fundamental, principalmente para a juventude brasileira que
jamais pode ter elementos de reflexão sobre esse período.
Certos documentários chegam para preencher
o vazio deixado pela ausência de uma historiografia política e pela amnésia
imposta por esses anos obscuros.
Levar a verdade ao conhecimento da
sociedade sobre as violações dos direitos humanos, sobre as formas de
resistência à ditadura, é também uma contribuição à construção da memoria
politica.
Apagar a memória desse passado
traumatizante é querer impedir que a sociedade possa conhecer a verdade sobre a
violência política imposta pela ditadura. A geração que lutou pela democracia
no Brasil foi tratada quando da ultima campanha presidencial como terroristas.
O Brasil ainda está num processo de
amadurecimento de sua democracia.
(1) Roberto Marinho, no jornal O Globo, edição n° 1.596, 7 de outubro de 1984
Doutora em Economia, analista politica
jornalista correspondente do Brasil na França
Traduçao de Fábio Khouri
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